Grileiros ameaçam pesquisadores do Incra em área com quilombolas no Entorno do DF
Órgão federal não divulgou os nomes dos autores das ameaças e como procedem: questionado, Incra se limitou a escrever que partiriam de pessoas e grupos, inclusive políticos, que teriam interesses nas terras

Uma equipe de pesquisadores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem sido ameaçada, nos últimos dias, por grileiros em extensa área rural (de aproximadamente 1,5 mil hectares), chamada de Antinha de Baixo, em Santo Antônio do Descoberto, no Entorno do Distrito Federal.
Esses profissionais avaliam se o território pode ser definido como remanescente quilombola. Para os descendentes, o lugar é a comunidade “Antinha dos Pretos”.
“A etapa do estudo antropológico (atualmente em andamento) tem sido marcada por fortes ameaças contra os servidores do Incra-DF e Entorno”, informou o órgão em documento enviado à Agência Brasil.
O Incra não divulga os nomes dos autores das ameaças e como procedem. Questionado, o órgão se limitou a escrever que partiriam “de pessoas e grupos, inclusive políticos, que têm interesses nessas terras”.
Para garantir a segurança dos pesquisadores, o Incra informou que procurou apoio das “instituições do sistema de justiça e forças de segurança para acompanhar o processo investigativo por meio da Câmara Nacional de Conciliação Agrária”.
Questionada sobre a denúncia do Incra, a Polícia Militar de Goiás informou que atua de forma preventiva e ostensiva.
“Em relação ao fato mencionado, não recebeu nenhuma solicitação formal, mas se coloca à disposição de qualquer interessado”, afirmou. A Secretaria de Segurança Pública de Goiás não respondeu os questionamentos da reportagem.
Para os pesquisadores, tudo pode ser importante. Rastros, pistas, reminiscências, documentos, inscrições, informações orais e até cruz de cemitério.
O primeiro passo para o reconhecimento como território quilombola foi dado por parte da comunidade ao solicitar o autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares.
Liderança comunitária em Santo Antônio do Descoberto, a professora Railda Oliveira testemunha que a equipe do Incra precisou de apoio da Polícia Federal para fazer o trabalho de coleta de material. “As pessoas estavam realmente ameaçadas na comunidade de Antinha”.
CONFLITO JUDICIAL – O documento da Fundação Palmares foi publicado no dia 1º de agosto. Dois dias antes, uma decisão assinada pela juíza Ailime Virgínia Martins determinava a desocupação de 32 imóveis da comunidade.
A disputa judicial pela região começou na década de 1940. O morador Francisco Apolinário Viana pediu que a terra fosse regularizada no nome dele.
Em 1985, mais três pessoas também entraram na justiça. Lideranças da comunidade alegam que os documentos seriam falsos. Com esse argumento, os descendentes dessa família pediram a posse.
A comunidade reclamou que a decisão não levou em conta o pedido de remeter o caso à Justiça Federal ao ignorar o protocolo feito para a Fundação Palmares.
No dia 5 de agosto, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, havia decidido suspender a ordem de desocupação. O caso passou a ser da alçada da Justiça Federal.
Só que pelo menos 10 casas foram destruídas por homens em tratores a serviço de beneficiários da decisão.
Membros da comunidade apontaram que um fazendeiro se apresentou como proprietário da área e que teria dado ordens para tomar posse dos imóveis. Outro beneficiário seria o irmão dele, um desembargador.
O advogado Francisco Porfírio, de 56 anos, que mora na região desde 2005 e é presidente da associação dos moradores, disse que a derrubada foi traumática.
“Resta entrar na Justiça para ser indenizado”, afirmou enquanto levava móveis em uma caminhonete para a casa de um familiar.
QUILOMBOLAS – A decisão do STF representou alívio para o motorista Jair da Silva Moreira, de 58 anos, uma das lideranças quilombolas do local.
Ele é nascido e criado na mesma casa, construída há mais de 60 anos, e que ficou por um triz de ser derrubada na primeira semana de agosto.
“Eu e minha família ficamos sem dormir. Não tem como ficar tranquilo. Meu avô Saturnino (já falecido) também sempre recebeu ameaças por ser quilombola e morar aqui”.
Tomar banho no Córrego da Inês, apreciar a vista do Morro da Liduvina, correr por entre o canavial, recostar-se à sombra da mangueira plantada pelo avô. Cada cantinho de Antinha de Baixo tem significados especiais para a família dele – cerca de 400 pessoas.
“Todos ficamos inconformados e, depois, um pouco mais aliviados. Mas ainda há pessoas armadas andando pela nossa comunidade que é de nossos ancestrais”. Nas proximidades de casa, está o cemitério em que os avós e bisavós estão enterrados.
O avô Saturnino, segundo o neto, já tinha sido ameaçado por fazendeiros do local, segundo Jair. “Meu avô já dizia que eles iriam criar uns documentos falsos para tomar nossa terra. Isso foi em 1995”, recorda.
Desta vez, em 2025, viu de novo pessoas circulando armadas e tirando fotos das casas deles. “No dia em que iriam derrubar minha casa, um homem ficou na porta de casa e o outro ficou lá dentro”, disse. Uma marca de saudade é uma mangueira que ele viu o avô plantar há 50 anos.
O primo dele, o agricultor Gilson Pereira, de 48 anos, diz que a roça de casa é a vida para eles.
“Quem tenta tirar a gente daqui, quer nos matar. Eu não sei fazer outra coisa sem ser plantar para viver e vender na feira da cidade”.
Nos fundos da casa, estão as plantações de milho, feijão, banana e cana. Outra especialidade da família é a produção e venda da rapadura.
“O doce é símbolo da nossa resistência também. É nossa raiz. Temos tanta história dos nossos antepassados, e a gente viu que ía perder tudo de um minuto para o outro”, afirma Gilson.
Quando se viu ameaçado, o agricultor lembrou do pai Espiridião Pereira, falecido há mais de seis anos, que o ensinou a plantar cana e a fazer a rapadura. Pensou também nos dois filhos, um adulto, advogado, e uma criança.
Outra produtora rural quilombola, Geralda da Silva, de 56 anos, testemunha que todos na comunidade ainda estão assustados. “Inclusive as crianças que não entendiam o que estava ocorrendo. Elas choraram e agora estão mais tranquilas”.
Para outra produtora rural, Maria Aparecida da Silva, de 58 anos, que diz sentir felicidade em se identificar como quilombola, manter o chão onde nasceu significa manter a história viva para os oito filhos.
“A gente ouve falar que esses fazendeiros podem estar interessados em nossa área por ser terra rara, rica em minérios. Mas nossa família só quer plantar”.
Diante do córrego de Antinha, em que os mais velhos se acostumaram a se refrescar, homens e mulheres da região estavam emocionados.
“Essas águas são limpas. A gente pode beber. Nossos filhos e netos também viverão aqui. A gente ainda tem muito medo, mas agora também alguma esperança”, diz Jair Moreira. [Informações da Agência Brasil/EBC, em Brasília]